A conduta recalcitrante das concessionárias de serviço público ao cumprimento da lei e das decisões judiciais
Após a privatização da CEDAE, novas concessionárias assumiram a prestação dos serviços de fornecimento de água e esgotamento sanitário na cidade do Rio de Janeiro.
Nos termos do contrato de concessão celebrado com o estado do Rio de Janeiro, a CEDAE ainda permanece como empresa responsável pelo tratamento e fornecimento de água às atuais concessionárias, que por sua vez estão encarregadas da distribuição ao consumidor final e da gestão comercial do serviço.
Ao que parece, a esperada melhoria do serviço público essencial não será uma realidade. O início da operação das novas concessionárias é problemático e demonstra que os usuários poderão sofrer muitos transtornos nessa relação.
Práticas antigas que violam direitos básicos do consumidor e há muito declaradas ilegais pelos Tribunais de Justiça dos Estados e até mesmo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) foram retomadas.
Nos condomínios atendidos por único hidrômetro que mede o consumo total, por exemplo, as concessionárias retornaram a cobrar mediante a multiplicação da tarifa mínima pelo número de economias (unidades) do prédio. Isso, a despeito do medidor aferir o real volume de água consumido no condomínio e permitir a cobrança de acordo com esse consumo real.
Essa era uma prática antiga da CEDAE e de outras concessionárias pelo Brasil, que resultou em uma infinidade de ações judiciais no território nacional nas últimas duas décadas.
O STJ decidiu pela ilegalidade dessa prática em definitivo, no julgamento do recurso especial nº 1.166.561/RJ (tema 414), na sessão de 25.08.2010, tendo sido o acórdão com a tese publicado em 05.10.2010.
Na ocasião, o STJ consolidou o entendimento de que nos condomínios cujo consumo total é apurado por único hidrômetro, a cobrança deveria ser feita com base no volume efetivamente aferido no medidor, ou seja, de acordo com o consumo real apurado.
Assim, foi declarada a ilegalidade da cobrança por meio da multiplicação da tarifa mínima pelo número de unidades do prédio, que onera em demasia o consumidor e confere vantagem indevida à concessionária.
Posteriormente, as concessionárias — incluindo a CEDAE — tentaram ajustar suas condutas ao longo da última década, em maior ou menor grau. Quando não o faziam eram condenadas pelos Tribunais de Justiça dos Estados à devolução em dobro dos valores cobrados indevidamente ao consumidor.
Não bastasse isso, há outra manobra muito utilizada pelas concessionárias a fim de obterem vantagem indevida dos condomínios. Trata-se da aplicação da tarifa progressiva¹ desconsiderando a totalidade de usuários (unidades autônomas) que consomem água no prédio, considerada ilegal pela jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Nos condomínios atendidos por único hidrômetro, as concessionárias efetuam o cálculo de aplicação da tarifa progressiva como se toda água consumida no prédio inteiro, por todos os usuários, fosse utilizada por apenas um único consumidor, excessivamente e com desperdício.
Ao não considerar a totalidade das economias (usuários/unidades) existentes nos condomínios, para fins de aplicação da tarifa progressiva, despreza-se o consumo per capta de cada unidade ao faturá-lo.
Para melhor ilustrar a questão, explica-se que no Rio de Janeiro as faixas de consumo da tarifa progressiva domiciliar são divididas em 5: (1ª): 0m³ a 15m³; (2ª): 16m³ a 30m³; (3ª): 31m³ a 45m³; (4ª): 46m³ a 60m³; (5ª): > 60m³.
Como exemplo, imagine-se um condomínio residencial de 10 apartamentos, cujo consumo total apurado no único hidrômetro foi de 660m³ de água no mês, o que resulta na média per capta de 66m³ por apartamento (economia).
Caso o cálculo da tarifa progressiva considere as 10 economias existentes, até 150m³ seriam tarifados na 1ª faixa; de 160m³ a 360m³ na 2ª; de 310m³ a 450m³ na 3ª; de 460m³ a 600m³ na 4ª; e acima de 600m³ na 5ª e última faixa de consumo, que é a mais cara.
Entretanto, na forma como as concessionárias públicas têm faturado o consumo de condomínios com único hidrômetro, sem considerarem a totalidade das economias existentes, mas apenas uma, todo consumo excedente a 60m³ de água é tarifado já na última faixa.
Logo, no caso hipotético, na forma de faturamento praticada pelas concessionárias, do consumo total, 600m³ seriam tarifados na 5ª e última faixa, a mais cara. Porém, considerada a dimensão e quantidade real de usuários do condomínio, ou seja, as economias, somente 60m³ seriam tarifados na 5ª faixa.
Portanto, está claro que as economias servem para adequar a tarifa progressiva aos imóveis que, apesar da existência de muitas economias, possuem apenas um hidrômetro para aferir o consumo total, como ocorre em quase todos os condomínios edilícios atualmente. Essa é a única forma de conferir tratamento isonômico aos condomínios.
Com efeito, o resultado da prática ilegal das concessionárias não poderia ser outro: a completa distorção dos parâmetros do consumo da água nos condomínios, com a única finalidade de encarecer exponencialmente o preço do serviço e obter vantagem indevida do consumidor.
Dessa forma, como o consumo total de água do condomínio é considerado como sendo de apenas um usuário, a maior parcela invariavelmente é faturada na última e mais cara faixa tarifária.
Por certo, o consumo tão elevado do recurso hídrico por apenas um usuário deve ser penalizado com o encarecimento exponencial do preço, em razão do desperdício ou uso não racional do recurso hídrico. Afinal, a água é bem essencial e finito, que deve ser utilizado sempre com economia e racionalidade, até mesmo para a preservação do meio ambiente.
Ocorre que os condomínios não representam apenas um usuário do serviço, que está a desperdiçar o recurso hídrico ou utilizá-lo em excesso. Ao contrário, outra é a realidade: trata-se de uma coletividade de usuários, que, em regra, empenham grande esforço para consumir de maneira consciente, com a máxima eficiência e economia.
Entretanto, dessa forma há um aumento de 700% no valor da tarifa de água, comprometendo a saúde financeira de qualquer condomínio.
É certo que os decretos estaduais RJ nº 553/1976 e nº 22.872/1996 estabelecem e regulamentam o sistema de economias, o qual é determinante para o enquadramento tarifário. Nesse sentido, o art. 99, do decreto estadual RJ nº 22.872/1996, é expresso ao definir que o número de economias será utilizado no cálculo do consumo de água medido pelo hidrômetro.
Se o cálculo da progressividade levasse em consideração apenas uma economia, os condomínios nunca conseguiriam se manter nas faixas de consumo normais (mais baixas). Seria impossível que um condomínio de 10 unidades conseguisse utilizar 15m³ por mês ou até 500 litros de água por dia. Se em cada apartamento morarem 4 pessoas, cada indivíduo teria que consumir até no máximo 12,5 litros de água. Trata-se de uma quantidade de água ínfima, levando em consideração o consumo médio de água brasileiro de 152 litros ou os padrões mínimos exigidos pela Organização Mundial da Saúde, que estima entre 50 e 100 litros de água a quantidade mínima necessária para o ser humano preencher as suas necessidades mais básicas de sobrevivência.
No caso dos condomínios maiores, a situação é ainda mais delicada. Em um prédio de 100 unidades (considerando que em cada unidade moram 4 pessoas), cada pessoa poderia consumir apenas 5 litros de água por dia para que o condomínio se mantivesse na primeira faixa de consumo. A quantidade equivale a um décimo dos padrões mínimos de água exigidos pela OMS para que o ser humano possa preencher as suas necessidades mais vitais.
Logo, deve-se considerar a totalidade das economias existentes no condomínio para que seja divido entre elas o total apurado no hidrômetro, a fim de calcular com adequação a tarifa progressiva e atender à finalidade própria, que é cobrar mais caro de quem mais consome.
As práticas relatadas provocam uma grave distorção e ocasionam cobranças indevidas, muito superiores ao realmente devido pelos consumidores de condomínios, caso considerado o efetivo consumo medido pelo hidrômetro e a totalidade das economias existentes.
O impacto é enorme e representa um aumento exponencial dos custos ordinários, afetando todo o planejamento e a capacidade financeira dos condomínios, em momento já tão fragilizado em decorrência da pandemia.
Para que se tenha uma ideia da magnitude do problema, a parcela das cotas condominiais destinada ao pagamento do serviço de fornecimento de água e tratamento de esgoto poderá representar a maior despesa dos condomínios a partir de então, superando até mesmo o gasto com a folha de pagamento dos funcionários do prédio.
Não por outra razão, inúmeras ações judiciais foram propostas por condomínios contra as novas concessionárias no Judiciário Fluminense, seja em razão da cobrança mediante a multiplicação da tarifa mínima pelo número de economias, ou porque não se considera a totalidade das economias com a finalidade de aplicação da tarifa progressiva.
Em paralelo, encontram-se pendentes de julgamento perante o STJ dois recursos especiais afetados ao rito dos repetitivos — REsp nº 1.937.887/RJ e nº 1.937.891/RJ —, nos quais as concessionárias fazem grande esforço na tentativa de revisar a tese antes fixada para o tema 414, de maneira a conseguir “legalizar” essas duas práticas.
Caso seja acolhida a tese das concessionárias, em contradição ao que dispõe o ordenamento legal, os consumidores (usuários) de condomínios estarão em uma posição de extrema desigualdade em relação aos demais, pois o custo do serviço para esses usurários em específico será muito superior ao dos demais.
Afinal, em uma casa, na qual se considera um usuário (uma economia), a aplicação da tarifa progressiva é feita de acordo com o volume de água utilizado por essa unidade. Já nos condomínios, será efetuada mediante a multiplicação da tarifa mínima pelo número e unidades e, ainda, com a aplicação da tarifa progressiva em função do consumo de todo prédio, desprezando-se a quantidade total de usuários e o consumo per capta.
Com efeito, a tarifa cobrada de usuários de condomínios edilícios será sempre muito superior àquela exigida de outros usuários individualizados, ainda que estejam na mesma categoria, seja residencial ou comercial.
As duas hipóteses violam claramente a finalidade e a natureza do sistema de progressividade tarifária, qual seja, o consumo consciente do recurso hídrico, ao cobrar valor exponencialmente superior a quem tiver o maior consumo.
Isso porque a utilização do recurso com racionalidade e economia nos condomínios não resultará na redução do preço pago pelo serviço, já que o valor cobrado pela concessionária não corresponderá ao efetivo consumo, mas à multiplicação de uma tarifa fixa pelo número de economias do condomínio, ou, ainda, pela aplicação da tarifa progressiva sobre um elevado volume de água consumido por diversos usuários, ficcionalmente considerados como se fossem somente um e sobretaxados em razão disso.
Ainda existe o dano ambiental decorrente dessas práticas, em razão da total ausência de incentivo ao uso racional e sem desperdício do recurso hídrico.
A realidade é que as concessionárias não demonstram preocupação com a utilização do recurso hídrico de forma comedida, tampouco em cobrar dos condomínios de acordo com o consumo real. Ao contrário, pretendem obter vantagem indevida a qualquer custo.
Por fim, é importante ressaltar que a ABADI (Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis e Condomínios) e o SECOVI-RJ (Sindicato da Habitação) se manifestaram nos recursos especiais repetitivos (REsp nº 1.937.887/RJ e nº 1.937.891/RJ) que decidirão de vez as controvérsias relacionas à tarifa de água, defendendo a aplicação da tarifa pelo consumo medido, levando em consideração a progressividade pelo número total de economias. Após o ingresso da ABADI e do SECOVI-RJ, a OAB do Rio de Janeiro, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro também se manifestaram pela aplicação da tese defendida pelos condomínios.
¹A cobrança pela tarifa progressiva teve a legalidade reconhecida pelo STJ, no julgamento do tema 407.