Não é a primeira vez que me dedico a questões referentes aos contratos de locação. Na última oportunidade, em conjunto com o professor Lenio Streck, publicamos artigo cujo título é “Pode o juiz arbitrar redução de aluguel dispensando prova?” [1], no qual fizemos análise da forma como as decisões judiciais estavam revisando os aluguéis (em contratos de locação) no início da pandemia da Covid-19.
Passados quase 12 meses da publicação daquele artigo, novamente me debrucei sobre questão envolvendo os contratos de locação. Agora, a questão paira sobre a possibilidade, ou não, de ser revisado o índice de correção monetária IGP-M (Índice Geral de Preços-Mercado) estabelecido livremente pelas partes em contrato de locação por outro índice, a pedido da parte locatária, diante do aumento de 31,10% do IGP-M nos últimos 12 meses.
Para introduzir o leitor ao conteúdo do artigo, crucial relembrar que o índice de correção é escolhido, livremente, pelos contratantes. Ou seja, por mais que o índice IGP-M seja costumeiro nas relações locatícias, nada impede que se opte por índice diverso.
Em outras palavras, em um sistema capitalista, que reconhece como seu ponto-chave o princípio da liberdade da iniciativa privada, os operadores econômicos (partes do contrato) são livres para dar aos seus contratos os conteúdos concretos que considerem mais desejáveis, bem como alterá-los posteriormente para readequá-los aos diferentes e, muitas vezes, imprevisíveis cenários econômicos e sociais que estejam vivenciando. O regulamento contratual resulta, assim, pela vontade concorde das partes, constituindo o ponto de confluência e de equilíbrio entre os interesses — normalmente contrapostos [2]. Tal premissa parece importante para dar início à presente análise.
Em decorrência da maior taxa para os últimos 12 meses desde maio de 2003, muitos locatários têm se socorrido do Poder Judiciário para rever essa situação, sustentando a necessidade de modificação do índice de correção monetária para o IPCA, por exemplo.
Em dois casos recentemente julgados pelo TJ-SP, os desembargadores, em sede de agravo de instrumento, deferiram o pedido de que, temporariamente, o índice IGP-M seja substituído pelo IPCA [3]. Porém, em outros casos, tal pedido foi negado, como em caso analisado pela 33ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP [4].
No referido caso analisado pela 33ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, a desembargadora relatora, em seu voto, afirmou o seguinte: “Não se olvidam os notórios efeitos causados pela pandemia da Covid-19 às relações contratuais. Todavia, não se pode aceitar que o Poder Judiciário intervenha, liminarmente, em toda a relação contratual, cuja justificativa seja a crise sanitária enfrentada por todo o planeta. No caso em tela não se afigura razoável, em juízo de cognição sumária, num primeiro momento processual, intervir na relação, e no índice de correção monetária adotado pelas partes contratantes, sem ao menos permitir que a parte contrária se manifeste”. Desde já, pode-se verificar que, mesmo dentro do TJ-SP, já existem entendimentos diversos sobre situações semelhantes.
Em recente caso analisado pela Justiça gaúcha, foi deferido pedido de tutela de urgência determinando a modificação do índice de reajuste dos contratos de locação celebrados pelos shoppings centers demandados na ação de IGP-M para o índice IPC-A. Em sede de agravo de instrumento, os shoppings centers conseguiram o efeito suspensivo para suspender tal decisão, ao menos, por enquanto.
Ou seja, parece possível afirmar que tal temática da possibilidade, ou não, da revisão do índice de correção monetária poderá gerar o mesmo tipo de judicialização ocasionada pelos pedidos de revisão dos locativos iniciada no início de 2020.
O intuito não é debater se, efetivamente, o aumento do índice IGP-M, nos últimos 12 meses, por si só, justificaria a sua substituição por outro índice de correção. Mas, sim, analisar de que forma o juízo, na decisão judicial, deve tomar sua decisão.
Do ponto de vista processual, os cuidados a serem tomados pelo juízo ao analisar o pedido de alteração do índice de correção se faz muito parecidos com os cuidados já sustentados pelo autor no artigo publicado em maio de 2020. Em outras palavras, será que a notoriedade do aumento do IGP-M seria suficiente para a aplicação do artigo 374, I, do CPC, por exemplo? Estaria o autor desincumbido do seu ônus probatório previsto no artigo 373, I, do CPC? A situação fática concreta (financeira) do locatário e do locador seriam relevantes para essa análise? E se o contrato de locação for paritário, como os de shopping centers (artigo 55-A da Lei de Locações), deveria ensejar uma análise diferente por parte do juízo?
Por exemplo, se o locatário (autor da ação) for empresa que antes mesmo da pandemia já possuía boa parte da venda do seu produto e/ou serviço vendidos de forma online, tal situação deve ser analisada de forma diferente caso o locatário seja restaurante que atende no formato bufê e que, com a pandemia, está impossibilitado de abrir? Entende-se que sim. Para isso, é crucial que, ao se deparar com situação dessa natureza, o juízo seja criterioso quanto ao ônus da prova.
Dito de outra forma, no momento em que o juiz arbitra um percentual de redução do locativo, sem a realização de prova específica pelo autor, ou seja, ignorando o impacto que a correção do contrato pelo IGP-M poderá, efetivamente, causar no caso concreto, ele não estaria agindo de forma discricionária-arbitrária? A resposta é — ou deveria — ser óbvia.
No momento em que o juízo ignora o ônus probatório, acaba por adentrar em campo perigoso, qual seja, o do ativismo judicial.
O ativismo judicial ocorre quando a razão (o Direito) é superada pela vontade, isto é, a relação entre lei e a sentença assume um aspecto completamente diferente. A decisão do caso concreto já não depende mais das leis, mas da vontade do juiz. O famoso jargão: “Decido conforme a minha consciência”.
Mas por quais razões o ativismo judicial acontece? A resposta é complexa, mas seria justamente pela falta de método “correto” na interpretação por parte do juiz (essa tese já foi defendida por Hans Kelsen no oitavo capítulo da sua “Teoria Pura do Direito”).
O juiz não está autorizado a escolher o sentido que mais lhe convir, o que seria dar azo à discricionariedade. A “vontade” e o “conhecimento” (aquilo que o juiz entende pro correto) não constitui salvo-conduto para a atribuição arbitrária de sentidos e tampouco para uma atribuição de sentidos arbitrária, que é consequência da discricionariedade.
Para evitar tal discricionariedade, é importante que o juízo seja exigente no que diz respeito ao ônus do autor, pois, para revisar estipulação firmada livremente pelos contratantes deve haver prova robusta que justifique.
Portanto, importante ressaltar que o autor não é, a priori, contrários à revisão ou alteração do índice de correção, mas, sim, à forma como ela será feita, os critérios analisados pelo juízo e a sua fundamentação.
Fonte: ConJur